Amar, verbo intransitivo

     Mário Raul de Morais Andrade (1893-1945) era paulista. Polígrafo e musicólogo de formação. Em 1917 lançou seu primeiro livro: Há uma gota de sangue em cada poema, apesar de inexpressivo, foi válido pela intenção pacifista. Inspirado na Primeira Guerra Mundial. Em 1922 participou ativamente da Semana de Arte Moderna de São Paulo, se tornando uma das principais figuras do movimento modernista brasileiro.
     Ainda em 22 lançou o primeiro livro de conteúdo moderno nacional, Paulicéia desvairada, recheado de polêmicas. Em 1925, publicou A escrava que não é  Isaura, ensaio em que defende a nova estética literária. No ano seguinte, foi s vez de Losango cáqui, poesia, e Primeiro andar, contos; em 1927, são lançados Clã do jabuti, poesia, e Amar, verbo intransitivo, romance; e Macunaíma, em 1928. E assim, seguiu publicando as suas obras até 1943.
     Por essa altura, a par de sua intensa atividade literária, exerceu com grande autoridade a crítica de música e artes plásticas na imprensa. Fase em que sua poesia ganha em profundidade e perde em gratuidade. Seu nome já é um dos mais respeitados dos intelectuais.    
     Sua extraordinária capacidade de trabalho, fê-lo aceitar por diversas vezes, cargos de grandes compromissos ligados a problemas culturais, como membro da comissão da reforma da Escola Nacional de Música e diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo.  
     Deve-se a ele a lei que organizou o Serviço da Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Fundou a Sociedade de Etnografia e Folclore de São Paulo e foi um dos organizadores do primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada. Em 1938, lecionou estética da arte na Universidade do Distrito Federal e trabalhou no projeto da “Enciclopédia Brasileira”, como integrante  do Instituto Nacional do Livro. 
     Apesar dos seus inúmeros compromissos, ainda detinha de tempo para publicar várias obras, entre 1934 e 1943. Era a manifestação do seu espírito fecundo e infatigável.  Lira Paulistana e O carro da miséria, foram publicados postumamente, e num só volume. Sua poesia impregnou-se de preocupação social, enriquecendo-se de uma nova dimensão.       
     Assim se manifestou Alceu Amoroso Lima,sobre aquele arquiteto das letras nacionais: “Grande alma e grande escritor, (…) ninguém com mais preocupação de construir algo de novo e de sólido que Mário de Andrade. Lançou-se em especial à elaboração e ao emprego de uma linguagem exclusivamente “brasileira” que deu aos seus poemas e aos seus romances um tom nativista no sentido clássico do termo (…) a sua morte consagrou-o como a figura mais representativa do Modernismo na sua mais pura essência revolucionária, e uma das maiores figuras das nossas letras de todos os tempos”. (1)
     Voltemos, então, ao livro em análise: “O romance Amar, verbo intransitivo causa impacto   quando publicado. Desafiando preconceitos, tematiza a descoberta do amor entre Carlos e Fraulein, uma governanta oficialmente contratada pelo empresário Sousa Costa para ensinar alemão e piano a seus filhos, mas, na verdade, encarregada de iniciar Carlos, o filho adolescente, na vida sexual”. (2).
     Nessa obra “se misturam Expressionismo, psicanálise e ostensiva exploração do papel do narrador” (3). 
´      E impressionante a visão que esse escritor detinha, há 90 anos, dos hábitos e costumes do povo brasileiro. Da família e da educação, principalmente. Por exemplo, nos primeiros parágrafos da narrativa, tasca: “Esta nossa educação brasileira…”, daquela época. E se fosse hoje?
     A seguir passo a pincelar algumas frases – para não ficar abrindo aspas o tempo todo – que o autor faz para alinhavar as circunstâncias que fazem Fraulein (Elza), uma “moça” séria de 35 anos, que não admite ser tomada por aventureira – “tenho profissão que uma fraqueza  me permitiu exercer, nada mais nada menos. É uma profissão -, para “educar” Carlos um jovem de 16 anos. Filho primogênito da tradicional família paulista Sousa Costa.    
     Ao conhecer o casal e os seus 4 filhos (3 meninas) a visitante-convidada que irá receber 8 contos (muito dinheiro) do reputado senhor, pelo “serviço”, pensa: “No princípio tinha de ser simples. Simples e insexual. O amor nasce das excelências interiores. Espirituais. O desejo depois”, ou seja, depois a mesma coisa recomeça, assim como o polvo readquire o tentáculo que faltava. 
     Aquela era uma família católica. Carecia, portanto, explicar a sua presença naquele lar. Procurando saber  bem como penetrar intimidades femininas. Tudo pela renúncia do amor, haja vista que a partir daquele momento, o menino estava com vontade de aprender piano também. Além da língua alemã,  que era seu “verdadeiro papel”.
     Pensa outra vez: “E coisa que se ensina o amor? Creio que não. Pode ser que sim. O amor deve nascer de correspondências, de excelências interiores”. Elza tinha um método bem dela. Por exemplo, um casal forma quatro  ombros que trabalham igualmente. Deve-se ter filhos… Os quatro ombros carregam os filhos. Por que essa imaginação se suas atividades, nos próximos meses…?  .
     “O homem tem se der apegado ao lar. Dirige o sossego do lar. Manda. Porém sem domínio. provê. É certo que a mulher o ajudará. O ajudará muito…
     No seu caso, em particular, “a profissão dela se resume a ensinar primeiros passos, a abrir olhos, de modo a prevenir os inexperientes da cilada das mãos rapaces. E evitar as doenças, que tanto infelicitam o casal futuro. Profilaxia”.  São os primeiros passos do amor.       
     O caso evoluiu com rapidez. Carlos tinha pressa, porém não sabia somar. Gostava mesmo de Fraulein. Se bem que “a aritmética nunca foi propícia aos brasileiros. Nos não sabemos coisa nenhuma. Das quatro operações, unicamente uma nos atrai, a multiplicação, justo a que mais rara frequenta os sucessos deste mundo vagarento”.     
     Antes de sua chegada, o menino passava o dia inteirinho na rua, futebol, lições de geografia, natação, etc. Agora? Vive na saia da professora. Dúvida! Amor nascente, no qual as almas ainda não se utilizam do corpo.  Porque nada sabem ainda. Os dois?
     Hora da aula. Os dois (somente eles) na enorme biblioteca da família, a “educadora” folheia o livro. Na página preferida estão versos de Heine. Ela pede que Carlos os leia em voz grave, em alemão. No final da leitura quer saber se o aprendiz entendeu. E com sensualidade na voz, bem próximo a orelha do garoto, diz: “… Se você ama, ou por outra se deseja no amor, pronuncie baixinho o nome desejado. Veja como ele se mova em formas transmissoras do encosto que enlanguesce. Esse ou essa que você ama se torna assim maior, mais poderoso. E se apodera de você. Homens, mulheres, fortes, fracos… Se apodera”.
     Encosta  no rosto dele, e beijo. Novamente pergunta:
     – Entendeu, Carlos?
     – Quase! mas adivinhei!
     Ela eleva o tom de voz, e com rispidez, exclama: 
     “Estes brasileiros!… Uma preguiça de estudar!…Qual de vocês seria capaz de decorar, que nem eu, página por página, o dicionário de Michaelis pra vir para o Brasil?Não vê. Porém. quando careciam de saber, sabiam. Adivinhavam”.   
     O coração de Carlos estava tal e qual o mar… Em tempestade. As letras se desenhavam mais lentas, sem gosto, prolongado a sua miséria e a felicidade. Ele sentia “as fomes amorosas”. Aliás , elas são muito mais expressivas e não fazem mal para ninguém.
     Porém, o amor não é só o que o senhor Sousa Costa pensa. Mas o que Elza pretendia ensinar ao mancebo: o amor sincero, elevado, cheio de senso prático, sem loucuras. Por fim, criar um lar sagrado! Onde é que a gente encontra isso agora? questiona Fraulein. 
     O pai e a professora sabiam do “acordo”, a mãe e o jovem, não. Contudo, tudo deveria ser revelado `a senhora Laura. Fraulein precisava ir embora e levar consigo 8 contos na bolsa e na cabeça, a certeza da missão cumprida. E quanto ao Carlos?Estava ele a salvo dos perigos da vida: das drogas, das doenças, dos vícios? E o pior perigo é a amante!
     Aqueles dois seres tão unidos, tão apoiados um ao outro, que aparentemente estavam felizes, precisavam deixar de se ver: a “governanta” ia partir. E assim o faz. O menino relutou: Eu não quero que você saia daqui de casa!”. Em vão. Ela nem reparou que ele passava do futuro para o condicional, ou seja, eu cairei, tu cairias se… etc.
     Tem-se 16 anos é um amor fácil. Por isso continuava errando muito (no alemão?). Caberia, portanto, ao pai lhe mostrar os perigos que nessas aventuras de amor pecaminoso correm os inexperientes. “Vocês todos já sabem quais são”. E “inexperientes” sem o prefixo?
     O trabalho e a profissão de Fraulein eram bem nobres, a moça tinha certeza disso. O seu dever era não sair daquela casa sem antes convencer o senhor do lar que indicasse ao filho os perigos futuros. A psicologia também existe. “Quando uma mulher erra, só o homem é que tem a culpa”.
     Dona Laura acalma o filho. Chora o filho, chora a mãe. De quando em quando o soluço: – Fraulein… e para acabar de uma vez com aquilo, a professora do amor calmo, partiu, para mais outros dois ou três “serviços”, depois, férias.  
     O senhor Sousa Costa, achou que o “rabicho tinha ido por demais”, naqueles três meses, por um lado. Por outro, o “amor brasileiro é assim: puxa, puxa, contrai, estica, mas largar não larga mesmo”. Então, que sentimento é esse? É “uma necessidade desde que a filosofia invadiu o terreno do amor”. Por lá ficou, causou estragos, mas ficou.
     Amar, verbo intransitivo, é uma obra indispensável à nossa leitura. Não apenas pelo contexto da época, ou por suas personagens. Mas, acima de tudo, pela sua beleza literária, pela lição que ensina a quem errou, superar as suas falhas. O livro foi lançado a 90 anos, e, em algumas de suas páginas, tem-se a sensação de que esse ou aquele fato ocorreram ontem. Entre as páginas 26 e 145, ou autor grafou o vocábulo amor, 42 vezes; amar, apenas 3, nas páginas 122 e 126. Por quê? Se o tema é amar. Coisas da imaginação criativa e genial de Mário.
     Só vocês lendo o livro, amigos seguidores. Por sinal, quero esclarecer aos leitores, que por sugestão da coautora do Facetas, os três belos temas, cujas pesquisas, a mim, foram prazerosas e com as quais aprendi muito, finalizo agora: felicidade, saudade e amor.
     Este comentário, é dedicado à Jéssica (a Darlen?), por acompanhar o nosso singelo trabalho, aqui registrado todos os sábados. 
     Texto: Francisco Gomes.
     Referências
     1. Andrade, Mário. Amar, verbo intransitivo. Círculo do Livro, SP, 1984.
     2. William Cereja e Thereza Cochar. Português linguagens, vol.3, Saraiva, 2010, p. 75
     3. Infante, Ulisses. Textos: leituras e escritas, vol. ún.Scipione, 2005, p. 508.

Deixe um comentário